quarta-feira, 10 de junho de 2009

O Ouro dos Raimundos - Showbizz [1995]



Uma banda brasileira que prima pelo intenso barulho das suas músicas, usa e abusa de palavrões nas letras e faz uma mistura estranha de hardcore com música nordestina normalmente estaria fadada a circular apenas em guetos alternativos. Com os Raimundos a história foi diferente.

Embalada pela canção erótico-porno-gráfica "Selim", a banda estourou de norte a sul do país, dominando as paradas das rádios e tornando-se o maior fenômeno musical de 94. As 120 mil cópias do primeiro disco, lançado pelo selo independente Banguela e distribuído pela gravadora Warner, esgotaram-se rapidamente nas lojas e são a melhor prova de que o cenário pop, o público e os formadores de opinião estão mudando.

Os Raimundos arremataram todos os prêmios dados pela mídia no ano passado. Mas a coroação definitiva veio agora. Na votação dos leitores, a banda se consagrou como a grande vencedora do prêmio BIZZ 94.

Os Raimundos venceram nas categorias melhor grupo, disco e clipe nacionais batendo nomes consagrados como Sepultura e Legião Urbana.

O sucesso do grupo, lançado pela BIZZ em 93, é fácil de explicar. A zoeira dos quatro garotos de Brasília chegou para revelar uma nova geração. Sem sotaque americano e resgatando uma brasilidade esquecida no cenário pop nacional, os Raimundos se transformaram na grande ponta de lança de um novo momento do jovem no Brasil. Entendendo o que está cantando e contagiado pelo bom humor e irreverência das letras do grupo, o público - com telefonemas e cartas - colocou na marra os Raimundos nos primeiros lugares das FMs de massa que, até então, praticamente só cediam seus espaços ao bate-estacas americano.

No meio dessa revolução raimunda, Fred, Digão, Canisso e Rodolfo riem. No entanto, é fácil perceber na personalidade dos caras que, mesmo que as coisas não estivessem indo tão bem, estariam rindo do mesmo jeito.

Faz parte do espírito de cada um deles, uma molecagem roqueira que não se vê por aí. Talvez por isso não se ache boas bandas de rock em cada esquina.

A história conta que o sucesso de alguns grandes nomes do showbiz estão vinculados - além do talento, é claro - a um trinômio básico: prêmios, escândalos (sexuais de preferência) e problemas com a justiça. Os Raimundos em pouquíssimo tempo conseguiram tudo isso. Parece que o caminho da banda começa a ser traçado.

Num flat simples (pago do próprio bolso) próximo ao centro de São Paulo, os Raimundos estão reunidos no apartamento do baterista Fred. Eufóricos, eles contam as histórias que viveram no primeiro ano em que saíram em busca do seu ouro e rodaram mais de 30 mil quilômetros pelo Brasil fazendo shows. Ao todo foram sessenta em sete meses. "Eu já sabia que o Brasil é grande, mas conhecer via terrestre... São várias etnias num mesmo país, mas no fundo é mundo igual. Tem uma música do Bob Dylan que diz que só existem doze tipos de pessoas no planeta. O resto são repetições dessas doze. Eu acredito nisso, viaja Canisso.

A trajetória dos Raimundos em 94, como toda banda que se preze, foi praticamente toda na estrada. Em alguns casos, até em ônibus de linha, como a turnê pelo Nordeste. No melhor estilo pau-de-arara, a rodada pelo país enriqueceu a vida de cada Raimundo e aumentou consideravelmente o número de experiências sexuais de cada um.

Sem o menor constrangimento, eles revelam que o relacionamento da banda com as fãs vai muito além de apenas dar autógrafos. "A gente vem conhecendo muita mulher e...", tenta falar Fred. "A verdade é que estamos comendo adoidado e isso é o bicho!", entrega Rodolfo. "Acho que o músico de rock só toca por causa disso mesmo. Dinheiro? Vem o governo e rouba". completa.

Entre casos com mulheres, lembram com orgulho de um show em Curitiba em que um batalhão de meninas insistia em colocar a mão por baixo da bermuda deles. "Meu irmão, a gente tava no palco e as garotas ficavam pegando na rola da gente", conta Rodolfo. "O palco era pequeno e várias garotas estavam sentadas na primeira fila. Elas iam chegando perto, metendo a mão por dentro da calça...", descreve Digão. "Não dava para cantar!", interfere Rodolfo. "Em compensação, depois do show foi uma festa". "As groupies são as melhores coisas que acontecem na estrada. Elas invadem os hotéis, dão pra todo mundo e fazem a alegria da galera. Elas são extremamente gente boa e se não fossem elas não existiria rock'n'roll. Teve uma vez que foi maravilhoso. Eu já tinha transado a noite inteira, fui dar uma passada no quarto de um roadie e tinham mais sete meninas me esperando", continua Rodolfo, e filosofa: "Tem coisas na vida que nada te tira, uma experiência bem-sucedida é uma delas.

Trepada e tatuagens, por exemplo, são coisas eternas e nenhuma repõe a outra. Aproveite todas aquelas que estiverem no seu caminho".

O vocalista Rodolfo, segundo a própria banda, é o mais ativo sexualmente falando. Ele se manifesta com empolgação quando o assunto é sexo. É quase um obcecado pelo assunto. "Eu ouvi a minha vizinha dando ontem. Só que no apartamento moram só duas mulheres. Fico achando que elas são lésbicas. De qualquer forma, a janela do meu banheiro dá para o banheiro delas...". revela. Não é preciso dizer mais nada.

As sacanagens que você ouve em letras como "Selim". "Puteiro em João Pessoa", entre outras, são absolutamente espontâneas e fluem normalmente no espírito moleque do grupo. "A gente não fala essas putarias a sério, é tudo tiração de sarro. Algumas mulheres pensam que somos machistas, não temos senso de humor", comenta Fred. "Pelo amor de Deus! Os Raimundos são uma grande brincadeira de moleques de 13 anos", indigna-se Digão.

Essa indignação, porém, transformasse em piada entre eles, quando o problema fica supostamente sério e as "baixarias" de "Selim" e cia, são praticamente censuradas em rede nacional. Na verdade, o grande rolo em torno do conteúdo pesado das letras dos Raimundos ainda está dando muito pano para manga, principalmente no sul do país. Na cidade de Santo Angelo, no Rio Grande do Sul, "Selim" foi proibida de ser executada nas rádios depois de determinação do juiz de menores local. Em outras cidades brasileiras, "Selim" recebeu na rede Transamérica um bip quando eram pronunciadas as palavras "vagina" e "bunda". Segundo a direção da rádio anunciantes no sul do país estavam reclamando da linguagem chula usada nas músicas executadas na emissora.

Esse "palavreado pornográfico", para a professora Maria Aparecida Machado, pedagoga da Escola Estadual Presidente Costa e Silva em Porto Alegre, é prejudicial à educação dos adolescentes e distorce valores como o amor e o carinho, transformando-os em pura pornografia. "O descobrimento do corpo e do sexo no adolescente é a causa do interesse nessa espécie de música.

Não é uma forma de amor consciente. "As moças podem ficar grávidas e os moços não assumem nada depois", defende a professora. "O grupo nos chamou a atenção porque todo o colégio canta as músicas, inclusive os filhos dos professores."

Os Raimundos acham graça disso tudo. Antes de assinarem contrato com o selo Banguela, a banda recebeu várias propostas de outras gravadoras. Segundo diz a lenda, numa reunião com os cabeças da Sony Music, os quatro Raimundos deixaram os executivos da companhia falando sozinhos quando foi colocado que, para fechar o acordo com a multinacional, os Raimundos teriam que abrandar o conteúdo das letras e diminuir a intensidade do seu som.

Para o diretor artístico do Banguela, Carlos Eduardo Miranda, o grande trunfo do Raimundos é exatamente a irreverência. "Eles são autênticos ao extremo. Quando eu ouvi pela primeira vez, chapei na hora. Os Titãs e o Jack Endino (produtor de Titanomaquia e de Bleach do Nirvana) também", lembra. "A sacanagem e a surpresa são fundamentais para os Raimundos. "Selim" originalmente não ia entrar no disco, foi gravada às pressas na última hora. Na versão acústica, os Raimundos são só o Rodolfo e o Nando Reis (Titãs)", revela.

A polêmica e tão falada "Selim" surgiu num rolé que a banda dava no Fusca do Canisso na autovia W3 em Brasília. "Um dos melhores programas no Planalto Central é sair no final da tarde pelas pistas livres, dirigindo devagar e fumando maconha", conta Canisso. "A visão era maravilhosa. O sol se pondo e aquelas gostosas andando de bicicleta. Um amigo nosso começou a cantarolar o comecinho e o resto veio rapidinho", lembra Digão. "Tem um vídeo do começo da trajetória dos Raimundos que retrata tudo isso. É meio que um arquivo secreto da banda", anuncia Fred.

Brasília ainda traz saudades e lembranças aos Raimundos. A cidade, considerada um pólo carente em entretenimento, é defendida pelos quatro filhos do planalto que preferem ver só o lado bom da capital. "Brasília é um liqüidificador cultural e isso é muito legal para a população da cidade. É criado um estigma que na cidade não há nada para fazer. É mentira!", fala Fred.

Como se imagina, a adolescência dos Raimundos foi mesmo bastante movimentada. Eles dividiam seu tempo entre música, colégio e diversão. O item diversão inclui casa de amigos gringos, cinema e acidentes de carro. "As pessoas se matam no trânsito em Brasília. Eu e o Rodolfo capotamos o meu extinto Fuscão e depois fomos ao cinema", lembra Canisso. "Eu tava ensinando o Rodolfo a dirigir e entrei no pau numa curva, para mostrar como é. Dei uma rodada animal e capotamos de uns cinco metros de altura. Como saímos ilesos do tombo e tínhamos combinado com o Digão no cinema, fomos para lá", conclui. "Eu tava no cinema vendo o filme quando escuto: "Digão! Tô aqui. Capotei o carro", diz Digão.

A perda total do Fusca e a grana do ferro velho deram origem ao baixo que Canisso usou até o fim do ano passado.

Até o reconhecimento do público no meio de 94, os Raimundos praticamente não receberam o apoio da família. Ao contrário, o fato de os filhos se ocuparem numa banda de rock não era bem visto pelo familiares. "É engraçado que no começo só o meu pai é quem dava apoio", lembra Fred. "Agora tá todo mundo feliz... O Canisso ganhou até um superbaixo Fender Jazzbass do pai dele." "Tem mais: teve época que eu achava que ninguém gostava de mim na família deles. Tinha certeza que neguinho ficava: 'pô, qual é a desse cara que fica levando a sério essa história de banda de banda de rock' , conclui Fred.

Com grana emprestada e um punhado de fitas demo na mão, os Raimundos vieram para São Paulo em meados de 93.

As fitas rapidamente foram divulgadas e tal; os mais descolados disputaram a tapa os primeiros exemplares de música raimunda gravada.

A mistura esporrenta de Luiz Gonzaga com Ramones, segundo a banda, é fruto dos genes paraibanos de Rodolfo. "Meus pais são paraíbas e deu para assimilar alguma coisa". Os 2 mil quilômetros que ligam Brasília a Paraíba eqüivalem proporcionalmente à distância percorrida pelos espermatozóídes do saco do meu pai até o óvulo da minha mãe", define o paraibinha.

Teorias à parte, a verdade é que a novidade chamada Raimundos chamou a atenção dos cúmplices do cenário pop brazuca e a banda pouco depois já estava tocando no Rio e em São Paulo.

Como migrantes que vêm tentar a vida na capital, os Raimundos, em vez de trouxas de roupa, traziam no ombro guitarras e amplificadores. "Ficamos assustados com o tamanho de São Paulo. Me dava urticária pensar na dimensão da cidade", lembra Fred. "O que a gente mais gosta daqui é o espírito de concorrência. A obrigação de ter que fazer sempre o melhor", completa Digão.

A casa do hoje diretor artístico e produtor de Raimundos, Carlos Eduardo Miranda, virou o Q.G. raimundo na ocasião. "Não tinha muito espaço e dormíamos no chão da casa do Miranda. A janela tava quebrada, entrava o maior vento", conta Fred. "Era época de frio, junho, e parecia que a gente tinha que passar por aquele carma pra saber como as coisas são difíceis", fala Canisso. "Mas a maior dificuldade mesmo, foi nos acostumarmos com os pernilongos mutantes do bairro de Pinheiros", brinca Rodolfo. "Desenvolvemos uma técnica para poder dormir", conta Fred, e com uma camiseta na mão demonstra: "Primeiro colocasse a camisa sem os braços. Pega o que sobra, cobre a cabeça e põe uma das mangas na altura do nariz". "É feita uma espécie de tromba para poder respirar. Fica tudo coberto e o bafo que sai da boca não deixa os mosquitos chegarem perto", conclui Rodolfo.

A experiência dos Raimundos em instalações, digamos, estranhas vai desde hotéis mal-assombrados a cabanas praticamente no meio da floresta amazônica. "Durante a gravação do disco, ficamos num hotel em que todo mundo sonhava com fantasmas, assassinato e o diabo. O Otto, percussionista do Mundo Livre, quando passou por lá viu um velho andando do armário até o banheiro durante a noite", diz Canisso. "Em Belém, ficamos numas cabaninhas a uns 15 quilômetros da cidade. Eu fiquei me achando o Tarzã. Era mato para todos os lados, não tinha ninguém, aí eu resolvi sair pelado pela floresta", conta Rodolfo. Atualmente, a banda procura uma casa para alugar onde possa e ensaiar com mais comodidade e sem interferência de regras de condomínio.

"Precisamos de um pico para criar as músicas sem encheção de saco. Aqui no flat volta e meia alguém reclama", diz Digão, imitando uma velha: "o som tá muito alto, tem um cheiro estranho entrando no apartamento do vizinho...''

O dinheiro raimundo arrecadado até agora com os shows e a venda do disco, segundo a banda, ainda não dá para grandes aventuras. "Tem gente pensando que os Raimundos estão milionários. Só tá se dando pra pagar o aluguel", diz Fred. "Se a banda terminasse agora, tava todo mundo fodido. Ninguém tem porra nenhuma", revela Canisso.

O contrato com o Banguela prevê para a banda uma porcentagem proporcional à venda do disco. Até 40 mil cópias vendidas, os Raimundos recebem 8% por cada disco. Dos quarenta em diante, vai para 10%. Passados 100 mil discos vendidos, o grupo recebe 15%.

O próximo grande passo na carreira da banda é resolver sua vida com as gravadoras. O acordo com o Banguela termina em março e só pode ser renovado caso o grupo assuma um compromisso com o selo por mais três anos.

A gravadora Warner, já fez uma proposta para que a banda passe a constar no cast da multinacional. Mas a princípio tudo indica que os Raimundos não vão mudar de emprego. "A major quer um artista que sempre venda mais de 100 mil cópias. As coisas podem mudar e aí é a maior pressão. Na gravadora independente não tem isso", fala Fred, o raimundo mestre que resolve assuntos burocráticos. "Não acredito que a Warner pegue os Raimundos. Se eles quiserem podem pegar, mas não é legal. Vai enfraquecer o Banguela ", sentencia Carlos Eduardo Miranda.

Com tanta movimentação, até agora os Raimundos ainda não prepararam o repertório do próximo disco, que deve ser lançado no começo do segundo semestre. "Fizemos uma música chamada ''Tora Tora''. É o sentido ao pé da letra, do que você entende por isso", conta Rodolfo. "É sem vaselina, sacou?", "No nosso processo de criação, pensamos num tema, aí geralmente saem três letras e três ritmos. Misturamos tudo e pronto", conta Canisso. "Raimundos é a banda que não está preocupada com convenções e regras. Todo mundo interfere em tudo e é por aí que o resultado fica legal", diz Fred.

Buscando sempre o novo, dando ao seu rock uma característica realmente brasileira, os Raimundos são o maior expoente entre os grupos nacionais que buscam em elementos brasileiros a chave para dar personalidade à sua música. Quem faz a atual cena pop no Brasil, percebe que o quanto mais nacional se é, mais internacional será. Essa é a velha nova ordem mundial.

Fred, Digão, Rodolfo e Canisso, antes inconscientemente e hoje totalmente conscientes, sabem disso. Mas apesar da "responsabilidade profissional" recém-adquirida, o tal sangue roqueiro que corre nas veias dos caras contínua borbulhando diversão e tesão, movido pelo poderoso afrodisíaco que se chama sucesso.

Revista Showbizz, edição 115. ??/02/1995.

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